quarta-feira, 24 de junho de 2009

ABECEDÁRIO DAS ELEIÇÕES IRANIANAS

Quem é quem na política iraniana
M.K. BHADRAKUMAR*

“A oposição cenográfica dos habitantes dos bairros ricos de Teerã cumpriu o papel de acrescentar cor, óculos ‘de griffe’ e hinos pró-mercado à campanha de Mousavi. Tido com reformador e progressista, Mousavi jamais foi nem uma coisa nem outra”, diz o indiano M.K. Bhadrakumar
A política iraniana nunca é fácil de decifrar.
A agitação criada em torno do resultado das eleições presidenciais da 6ª-feira passada intrigou muitos dos sempre presentes jornalistas e analistas autoproclamados decifradores bem informados dos códigos políticos iranianos.
Tanto se escreveu sobre tantas pistas falsas que, hoje, já ninguém parece saber quem é quem na disputa política no Irã, e o que mais interessa a cada um.
O grande vitorioso foi o Líder Supremo, o Aiatolá Ali Khamenei; esse, sim, alcançou vitória retumbante.
A ‘eminência parda’ da política iraniana, Akbar Hashemi Rafsanjani, é o perdedor, obrigado agora a lidar com os efeitos de uma acachapante derrota.
Resta saber se, afinal, estará caindo a cortina, depois de encerrado o último ato da tumultuada carreira do “Tubarão” –, apelido que ‘colou’ em Rafsanjani, desde o tempo em que nadava no poço sem fundo de intrigas que é o Parlamento ( Majlis) iraniano.
Naquele poço, Rafasanjani acostumou-se a nadar sem qualquer restrição, como predador político e como deputado porta-voz da Revolução Iraniana, desde os primeiros dias.

Com a enormíssima porcentagem de 64% dos votos, o presidente Mahmud Ahmedinejad venceu as eleições em 2009. E é difícil resistir à tentação de escrever que, como a grande baleia de Herman Melville em Moby Dick – a força, a fúria, a premeditação e a maldade –, Rafsanjani foi profundamente ferido pelo arpão eleitoral; e resta-lhe agora afundar, o mais silenciosamente possível, rumo ao esquecimento, no oceano da política iraniana. Isso, é claro, se a política iraniana fosse facilmente previsível; mas não é.

O governo do presidente Barack Obama nos EUA parece ter conseguido adivinhar o que viria, ou interpretou corretamente o significado alegórico da eleição iraniana; seja como for, antecipou-se ao terremoto que viria, desencadeado pelo vingancismo de Rafsanjani-Mousavi; e fez o melhor que havia a ser feito: manteve-se à distância, cuidadosamente afastado das eleições iranianas, resultados, protestos.
Começa agora a parte mais difícil, para Obama: seduzir o Conselho dos Anciãos que Khamenei preside como monarca quase absoluto.

Primeiro, um ‘abecedário’ das eleições.

Quem é Mir Hossein Mousavi, principal adversário que Ahmedinejad derrotou nas eleições?
É um enigma, travestido em mistérios. Impressionou a juventude e as classes médias urbanas como reformador e progressista. Jamais foi nem uma coisa nem outra.
Como primeiro-ministro iraniano, de 1981 a 1989, Mousavi jamais passou de político linha-dura, sem qualquer refinamento político. Estranhamente, a campanha eleitoral caríssima e over high-tech pôs em circulação outro Mousavi, que ninguém jamais vira antes, no Irã: como se o personagem tivesse sido desmontado peça a peça e, depois, se tivesse remontado, ele mesmo, para outras finalidades operacionais.
Para avaliar a mudança, basta ler as declarações de Mousavi, em 1981, depois da ‘crise dos reféns’ (como ficou conhecido o cerco de 444 dias à embaixada norte-americana em Teerã, quando estudantes, da jovem guarda revolucionária iraniana mantiveram presos, no prédio da embaixada, os diplomatas norte-americanos): “Foi o começo do segundo estágio da revolução islâmica. Depois da tomada da embaixada dos EUA descobrimos nossa verdadeira identidade islâmica. Depois daquela ação, sentimos que podíamos enfrentar cara à cara a política ocidental e analisá-la com a frieza com que o ocidente sempre nos analisou e avaliou ao longo de muitos anos.”
Há quem diga que Mousavi também participou da organização e criação do Hizbollah no Líbano.
Ali Akbar Mohtashami, mártir reverenciado pelo Hizbollah, foi ministro do Interior no governo de Mousavi nos anos 80.
Mousavi também teve participação no ‘affair’ conhecido como “Irangate” em 1985.
O caso conhecido como “Irangate” foi negócio costurado pelo governo Ronald Reagan, no qual os EUA forneceriam armas ao Irã; em troca, Teerã trabalharia para obter que o Hizbollah liberasse os reféns presos em Beirute.
Ironia é que, naqueles idos dos anos 80s, Mousavi aparecia como perfeita antítese de Rafsanjani; aliás, o primeiro ato de Rafsanjani, quando afinal assumiu a presidência em 1989, foi demitir Mousavi.
Rafsanjani não perderia nem um segundo de tempo, com os delírios “antiocidentais” de Mousavi, ou com suas manifestações de rejeição visceral ao ‘mercado’.
A plataforma eleitoral de Mousavi foi uma estranhíssima mistura de políticas contraditórias e interesses ocultados mas muito claramente dirigidos para uma única meta, como uma espécie de obscessão maníaca: retirar poderes da presidência da República, no Irã.

Por isso conseguiu reunir autoproclamados ‘reformistas’ que apoiavam o ex-presidente Mohammad Khatami, e, também as alas mais ultraconservadoras do regime.
Rafsanjani é o único político iraniano capaz de reunir grupos tão completamente diferentes; e sempre trabalhou ao lado de Khatami para fazer diminuir os poderes da presidência da República.

Se se deixa de lado a ‘oposição’ cenográfica feita pelos habitantes dos bairros ricos de Teerã (“multidão Gucci”, como se disse em Teerã), que cumpriu o papel de acrescentar cor, maquiagem, óculos ‘de griffe’ e hinos pró-mercado à campanha de Mousavi, o núcleo duro de sua plataforma política foram poderosos interesses que, nessa eleição, fizeram sua derradeira tentativa para derrubar o regime liderado pelo Aiatolá Khamenei.

Por outro lado, esses grupos de interesse sempre se opuseram furiosamente às políticas econômicas implantadas durante a presidência de Ahmadinejad, políticas que ameaçaram o controle que aqueles grupos sempre tiveram sobre setores-chave da economia, como comércio internacional, educação privada, propriedade da terra e produção agrícola.

Para quem conheça melhor o Irã, basta dizer que a família (clânica) Rafsanjani é proprietária de vários impérios financeiros no Irã, empresas de exportação-importação, latifúndios e da maior rede de universidades privadas do país.
O grupo, conhecido como “Azad” tem mais de 300 universidades espalhadas pelo Irã; não são unidades produtoras apenas de pensamento ‘privatista’, também chamado ‘neoliberal’; também serviram como importante instrumento de propaganda da candidatura Mousavi: no total, foram cerca de 3 milhões de estudantes ativistas anti-Ahmadinejad, organizados nas universidades da família Rafsanjani.

As universidades do grupo “Azad” e grupos associados foram a espinha dorsal da campanha de Mousavi nas províncias.
A ideia geral foi mobilizar os estudantes das universidades do grupo “Azad” para levar a campanha até os mais pobres nas provínciais e ‘desmontar’ as bases consideradas chave para a reeleição do presidente Ahmadinejad.

Rafsanjani é político cujo estilo sempre o levou a construir redes extensas em praticamente todos os escalões da estrutura do poder, com especial atenção a corpos político-administrativos como o Conselho de Guardiães, o “Expediency Council”, os clérigos Qom, o Parlamento, os tribunais, a burocracia, o bazar e, até, com elementos infiltrados nos grupos mais próximos de Khamenei.
Construídas suas redes, Rafsanjani põe-se a jogar com esses bolsões de influência.

O eixo Rafsanjani e Khatami foi a base da plataforma política de Mousavi, que reuniu reformistas e conservadores.
Tudo estava preparado para levar a eleição para um segundo turno, dia 19/6, com o Irã, sim, já completamente dividido ao meio.
A candidatura do ex-comandante do Corpo de Guardas Revolucionários Iranianos [ing. Iranian Revolutionary Guards Corps, IRGC] foi incluída na disputa para arrancar uma fatia de votos dos mais conservadores.

Esperava-se também que o programa “reformista” do quarto candidato, Mehdi Karrubi, contribuísse para arrancar votos de Ahmedinejad, mediante a propaganda de políticas econômicas de justiça social, como o programa imensamente popular de distribuição da renda do petróleo entre os cidadãos, em vez de esses lucros serem acrescentados diretamente no orçamento do governo.

O plano de Rafsanjani visava, de certo modo, a levar a eleição para fora da disputa eleitoral; esperava-se que Mousavi capitalizasse todos os votos ‘anti- Ahmedinejad’ – estimando-se que Ahmedinejad teria, no primeiro turno, 10-12 milhões dos 28-30 milhões de votos (de um total de 46,2 milhões de eleitores). Por esses cálculos – mas só se houvesse 2º turno – Mousavi seria o grande beneficiário, se os votos para Rezai e Karrubi fossem essencialmente votos ‘anti-Ahmadinejad’.

O regime já estava bastante envolvido na campanha eleitoral, quando afinal percebeu que, por trás do clamor por ‘mudanças’, Rafsanjani trabalhava, de fato, contra, sobretudo, a liderança de Khamenei; a batalha eleitoral não passava de simulacro e pretexto.
De fato, a luta entre Rafsanjani e Khamenei tem longa história, desde o final dos anos 80; e foi, então, vencida por Khamenei, que assumiu a liderança em 1989.
Rafsanjani foi um dos indicados pelo Imam Khomeini para o primeiro Conselho da Revolução Islâmica; Khamenei chegou bem depois, quando o Conselho aumentou o número de membros. Por isso, Rafsanjani sempre cultivou um ressentimento; sempre entendeu que Khamenei usurpou o lugar que seria seu, como Líder Supremo.
O establishment clerical mais próximo de Rafsanjani difundiu a ideia de que Khamenei não teria as credenciais religiosas necessárias; que seria indeciso; e que o processo eleitoral seria questionável, o que gerou dúvidas sobre a legalidade do poder de Khamenei.

Clérigos de prestígio, estimulados por Rafsanjani, insistiram na ideia de que o Líder Supremo não seria apenas autoridade religiosa ( mujtahid), mas deveria ser também fonte de emulação e proselitismo (marja ou um mujtahid com ‘adeptos’, seguidores religiosos) e que Khamenei não satisfaria esse requisito; mas Rafsanjani, sim.

Os ataques contra Khamenei passaram a ser construídos a partir do argumento, vil sob vários aspectos, de que sua educação religiosa não seria satisfatória. O trabalho de desconstrução, pelos clérigos ligados a Rafsanjani, continuaram até os primeiros anos da década de 90. Então, Khamenei escolheu recolher-se e permaneceu recolhido, consciente de que estava sob cerco, durante os anos em que Rafsanjani ocupou a presidência (1989-1997).

Resultado disso, Rafsanjani foi o presidente que mais poder teve, em todos os tempos, em Teerã. Mas enquanto isso, Khamenei, recolhido, também construía novos poderes.
Se não tinha prestígio entre a elite do establishment clerical iraniano, cuidou de atrair para seu lado o establishment da segurança, sobretudo o ministro da Inteligência, os Guardas Islâmicos Revolucionários e as milícias Basij.

Enquanto Rafsanjani mais e mais se envolvia com os clérigos e com o ‘mercado’, Khamenei procurou apoio num grupo de jovens políticos brilhantes, com experiência de organização e de luta, e que estavam voltando ao Irã depois da guerra Irã-Iraque; por exemplo, Ali Larijani, atual líder do governo no Parlamento; Said Jalili, atual secretário do Conselho de Segurança Nacional; Ezzatollah Zarghami, presidente da Rádio e Televisão Estatais; e, sim, também o próprio Ahmadinejad.

O poder político real começou a tender na direção de Khamenei, depois de ele ter atraído para seu campo os Guardas Revolucionários e as milícias Basij.
Quando o mandato presidencial de Rafsanjani chegou ao fim, Khamenei já comandava os três principais braços do poder governamental e toda a mídia estatal; já era comandante-em-chefe das Forças Armadas e, também, de várias instituições estatais, como a “Imam Reza Shrine” ou a “Fundação pelos Oprimidos”, máquinas praticamente ilimitadas para gerar apoios políticos.

Hoje, toda a estrutura de poder assumiu a forma de um complexo aparelho de liderança patriarcal.
Analistas bem informados e sensíveis anotaram, com precisão, que Ahmadinejad não teria qualquer interesse pessoal ou eleitoral que justificasse atacar diretamente Rafsanjani, durante o debate do dia 4/6, em Teerã, com Mousavi.
O ataque a Rafsanjani não foi ataque eleitoral: foi ataque em disputa política mais profunda.

Ahmadinejad disse, naquele debate: “Hoje, nesse debate, não enfrento apenas o Dr. Mousavi, nem ele está sozinho, aqui à minha frente. Aí estão três governos passados: do Dr. Mousavi, do Dr. Khatami e do Dr. Rafsanjani, todos reunidos contra a minha presidência e o desejo dos eleitores iranianos.”
Mirou e atirou diretamente contra Rafsanjani, acusando-o de organizar golpe contra as eleições.
Disse que Rafsanjani prometera à Arábia Saudita que não haveria segundo governo de Ahmadinejad.

Rafsanjani respondeu fogo com fogo, dias depois, em carta a Khamenei, em que exigia que Ahmadinejad se retratasse, “para evitar que [Rafsanjani] fosse forçado a tomar medidas judiciais cabíveis”.

“Espero que o senhor resolva esse impasse, e apague o fogo, cuja fumaça já se vê de longe; e que evite desdobramentos perigosos. Mesmo que eu estivesse disposto a relevar esse tipo de agressão, não duvide de que há gente, partidos, grupos, facções, que não a relevariam”Rafsanjani ameaçou Khamenei sem meias-palavras.
Simultaneamente, Rafsanjani convocou toda a sua base clerical: uma claque de 14 altos clérigos reuniram-se em Qom, à volta dele.

Já foi ato de desespero, acionado por interesses ocultos que já sabiam do crescimento muito significativo dos movimentos dos Guardas Revolucionários, nos últimos anos. Mas, se Rafsanjani supusera que seria fácil criar um ‘motim’ entre os clérigos, e que isso ‘desequilibraria’ Khamenei... errou muito gravemente no cálculo do poder político em Teerã.

Khamenei fez o que de melhor poderia ter feito para esvaziar o ‘movimento’ golpista de Rafsanjani: Khamenei simplesmente ignorou o “Tubarão”.
Dezenas de milhões de voluntários da Guarda Revolucionária e das milícias Basij foram rapidamente mobilizados para votar; somaram-se aos milhões de pobres das áreas rurais que se vêem manifestos em Ahmadinejad. Daí em diante, foi só esperar que se repetisse o que já acontecera nas eleições de 2005. O comparecimento às urnas – 85% dos eleitores votaram – foi o maior da história do Irã.
Esse comparecimento às urnas, não qualquer tipo de ‘fraude’ eleitoral, determinou a vitória de Ahmadinejad, sem 2º turno; horas depois de anunciados os resultados, aplaudiu o comparecimento dos eleitores às urnas, que, segundo suas palavras, mereceria “verdadeira celebração”.
Khamenei

Disse Khamenei: “Congratulo-me (...) com o povo iraniano por esse sucesso de todos. Todos temos muito o que agradecer, por tantas bênçãos recebidas”. Preveniu os jovens e “os que apoiam o candidato eleito e demais candidatos e apoiadores”, para que todos se mantivessem bem alertas, “para evitar os discursos e as ações de provocação.”

A mensagem de Khamenei a Rafsanjani foi bem clara: aceite a derrota e não volte a envolver-se em movimentos golpistas.
Os resultados da eleição de 6ª-feira asseguram que a casa do Aiatolá Khamenei, Líder Supremo, continuará a ser o ponto focal do poder político no Irã.
É o quartel-general do Presidente, das forças armadas iranianas e, sobretudo, dos Guardas Revolucionários. É fonte legítima do poder dos três braços do governo e é ponto nodal de todas as políticas econômicas, de segurança e de relações internacionais no Irã.

O presidente Barack Obama já deveria já estar pensando em construir caminho para aproximar-se (amistosamente, não beligerantemente, nem mediante sanções econômicas) e buscar vias de entendimento com o Aiatolá Khamenei.
Difícil imaginar desafio maior e mais complexo.
*M. K. Bhadrakumar é diplomata de carreira do MRE indiano. Serviu na União Soviética, na Coreia do Sul, no Sri Lanka, na Alemanha, no Paquistão, Uzbequistão, Kuwait e Turquia.

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