A Manchete do Jornal Los Angeles Times, da Califórnia (USA), do Dia da Ação de Graças do ano de 1994 era a seguinte: Mais de 30 Milhões de Americanos Estão com Fome no Dia de Hoje.
O Dia da Ação de Graças, que é celebrado na penúltima quinta feira do mês de novembro, juntamente com o Natal e o Dia da Independência dos Estados Unidos (4 de julho), constituem-se nos maiores feriados americanos.
Um dos pontos altos das comemorações neste dia é a reunião de familiares e amigos em torno de fartas mesas.
Esta passagem serve para ilustrar que a fome, e a sua irmã gêmea siamesa, a pobreza, se constituem nos maiores flagelos da humanidade e da sociedade dita moderna, e não respeita sequer os folguedos da economia mais rica e poderosa do planeta.
A fome espraia-se dentro das economias desenvolvidas, e dissemina-se de forma assustadora nas economias subdesenvolvidas ou periféricas.
Vale ressaltar que a fome e a pobreza são
invenções do homem.
Não há um determinismo, de qualquer ordem, de que muitas pessoas precisam ser pobres, excluídas e famintas, para que poucos tenham padrões de riqueza e de alimentação faustosos e perdulários. Uma das grandes causas da fome e da pobreza, é a necessidade de acumulação de riquezas e a busca incessante do lucro, de preferência nocurtíssimo prazo, nas economias capitalistas, onde o mercado é o senhor intocável, abstrato, e que tudo pode.
Por mais paradoxal e cruel que pareça, a fome e a pobreza podem se transformar em importantes instrumentos de acumulação de riquezas.
Existe um mercado, e bastante lucrativo, da fome e da pobreza.
Como funciona este mercado?
A produção agrícola tem duas vertentes importantes na sua definição.
A montante encontra-se uma rede constituída de alguns poucos fornecedores de equipamentos e insumos, que mantém uma estrutura fechada, que em economia chama-se de oligopólio.
Esses poucos comerciantes, trabalham na manipulação dos preços desses instrumentos de produção na forma que lhes é conveniente.
Além disso, muitas vezes subvertem Governantes inescrupulosos, e empurram “pacotes tecnológicos” em que estão embutidos agroquímicos e equipamentos pesados.
O caso dos produtos transgênicos no Terceiro Mundo situa-se exatamente neste contexto. Na outra ponta estão os compradores (ou o comprador) dos excedentes dos agricultores.
Esses senhores, por sua vez, estipulam preços, em geral, aviltantes ao produto agrícola, considerando que a produção é sazonal e perecível.
O agricultor fica no centro desta teia desigual, e estará vulnerável, justamente por não ter mecanismos de defesa, haja vista que na ocasião da venda dos seus excedentes, existirá uma quantidade bastante grande de produtores em igual situação, de modo que a oferta do produto tende a suplantar em muito a sua demanda sazonal.
Ai, o ente abstrato chamado mercado, agirá sempre em detrimento do agricultor, que estará tanto mais fragilizado, quanto mais isolado estiver, ao executar transações com os agentes das duas pontas: fornecedores e compradores.
Além disso, forjar escassez de alimentos para elevar os seus preços, se constitui em prática usual de quem atua de forma especulativa neste mercado.
Em áreas de pobreza, tanto de economias centrais como periféricas, uma característica marcante é a escassez de renda.
Desta forma, as famílias forjadas na vala da pobreza despendem toda a sua renda na compra de alimentos.
O encarecimento desses itens, ao tempo em que enriquece alguns poucos, implicará na privação para muitos, de um ítem essencial à vida: o alimento.
Algumas estatísticas oficiais e publicadas pelo Relatório de Desenvolvimento Humano da ONU de1998, mostram que nos EUA, o contingente da população, sobrevivendo abaixo da linha de pobreza, e portanto potencial faminta, é da ordem de 19,1%.
Na Inglaterra, parceira dos EUA nas aventuras beligerantes da atualidade, o percentual da população, nesta condição de ser pobre e potencial faminta é de 13,5%.
Para as economias subdesenvolvidas o Relatório da ONU de 2003 estima que exista 800 milhões de famintos, o que representa 18% da população do planeta terra.
Ainda de acordo com a ONU no seu relatório de 2003, 30.000 crianças com menos de um ano de idade morrem diariamente no mundo por conta da fome, diarréia e da desidratação.
Por outro lado, existe uma conexão indestrutível e biunívoca entre degradação dos recursos naturais, concentração da terra, pobreza e fome.
Estima-se que 400 milhões de pobres e famintos das economias subdesenvolvidas do planeta, sobrevivem em terras marginais, entendidas como terras íngremes, encostas de morros, em degradação, ou em desertificação, passíveis de inundação ou de seca, e
sem estrutura de produção e de escoamento.
Estima-se ainda que 32,2% da população que sobrevive nas economias subdesenvolvidas, o fazem com uma renda inferior a um dólar americano por dia.
Uma outra faceta da pobreza e da fome no mundo subdesenvolvido, mostra que 1/5 da população urbana desses países é faminta.
Estas estatísticas sinalizam para os equívocos das políticas públicas nesses países que não priorizam o desenvolvimento rural, e assim acabam contribuindo para o êxodo rural e para o inchamento dos grandes conglomerados humanos, com todas as implicações daí decorrentes, das quais a fome se constitui na mais dramática para essa população urbana.
Observa-se que este quadro desenha-se frente a um crescimento médio da produção de alimentos no mundo. De fato, entre 1980 e 1995 a produção de alimentos percapita cresceu 27% na Ásia e 12% na América Latina.
Apenas na África Subsaariana houve um declínio de 8% na produção percapita de alimentos.
Se a produção atual de alimentos no mundo fosse dividida eqüitativamente, cada terráqueo teria exatas 2.760 calorias por dia, ou seja, todos nós estaríamos bastante bem supridos de calorias.
Para o Brasil estima-se, com base nos dados da PNAD de 2002, que 21,36% da população está privada de renda (sobrevive em domicílios com renda total de até dois salários mínimos) e é privada também de serviços essenciais, como água potável, saneamento, coleta de lixo e educação.
Paradoxalmente no Brasil, o IBGE mostra que existem 16,36 milhões de hectares de terras que, embora produtivas, não são utilizadas.
Em geral estas terras constituem-se em latifúndios improdutivos, terras mantidas como ativos não monetários, importante fomentador de poder político e econômico, sobretudo nos grotões mais pobres do Brasil.
Deste total, o Nordeste, que é a região mais carente do País, apresenta 8,6 milhões de hectares.
Uma conta bastante simples mostra que se apenas estas terras produtivas e não
utilizadas no Brasil fossem empregadas na produção de quatro itens essenciais à dieta dos brasileiros:
arroz, feijão, mandioca e milho, aos níveis de produtividades atuais da terra - que não se constituem lá essas maravilhas - seria possível produzir por ano 40,08 milhões de toneladas destes itens.
Isto representaria alguma coisa como 235 quilogramas por pessoa por ano, ou 646 gramas por dia. Ou seja, produção mais do que suficiente para suprir as carências calóricas dos brasileiros famintos.
O custo para resolver o problema da fome no mundo está bastante aquém dos recursos que são gastos, nas aventuras bélicas dos EUA no Iraque.
Com efeito, a FAO estima que seriam necessários apenas US$5,2 bilhões por ano para alimentar os 214 milhões da população em situação mais crítica de famintos no mundo.
Para tanto teriam que ser carreados recursos para promoção da produção das unidades
agrícolas familiares, incremento da produtividade da terra e do trabalho, recuperação das áreas em degradação, geração de conhecimento científico que produza tecnologias adaptadas e adequadas aos ecossistemas onde vivem os pobres, e reforma agrária. Adicionalmente, deveriam ser incrementadas políticas de acesso à educação, saúde, saneamento e à água potável, tanto por parte das populações urbanas como rurais.
Nas áreas urbanas os programas deveriam priorizar estímulo aos empreendimentos
utilizadores de mão de obra, através de políticas de crédito com juros favorecidos, assistência na geração e administração de empreendimentos empregadores de mão de obra.
As políticas macroeconômicas devem seguir um outro percurso, voltando-se para privilegiar o ser humano em vez do capital especulativo. Assim, devem ser revistas, por parte das economias ricas, os atuais níveis de endividamento das economias atrasadas, de tal forma que, em parte, ou no todo, lhes sejam retirado este fardo.
Os dirigentes dos países periféricos, por sua vez, devem encarar o ser abstrato chamado
mercado, de tal sorte que isso induza a uma reversão das políticas macroeconômicas.
A manutenção de políticas rígidas de geração de superavits primários, que estas economias estão obrigadas a cumprir para produzir recursos que são transferidos para especuladores internacionais, é incompatível com a redução dos atuais níveis de pobreza, e do número de famintos que prolifera nas economias endividadas.
Isto porque esta ortodoxia no encaminhamento das políticas, conduz, inexoravelmente à manutenção de juros elevados, justamente para que os capitais especulativos sejam atraídos, e para manter a estabilização monetária, que na verdade visa sinalizar para os grandes capitalistas o verdadeiro papel do sistema de preços nas economias de mercado, qual seja, o de funcionar como semáforo para estes capitalistas dos setores onde há potenciais vantagens de otimização de lucros.
Como se observa, não é fácil promover a inclusão social dos milhões de famintos do mundo, sobretudo aqueles posicionados nas economias periféricas, justamente por conta das amarras e armadilhas de toda ordem que pontificam nessas economias. E isto se torna mais difícil se os governantes não assumirem uma postura firme diante deste estado de coisas e decidam, devidamente respaldados pelas respectivas populações, priorizarem o seu povo carente, deixando para o lado aqueles que buscam o ganho
fácil da especulação.
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*José Lemos é Professor da Universidade Federal do Ceará. Ex-Professor Visitante da Universidade da Califórnia USA, entre maio de 1994 e outubro de 1995. Artigo produzido para o Observatório Internacional da UFC e originalmente publicado no jornal
“O Povo”, de Fortaleza-CE. lemos@ufc.br .